Quinta-feira, Março 30, 2006carta aqui deixada por charlie
Em primeiro lugar, devo dizer que não há ex alcoólicos.
Um alcoólico é o para sempre.
A minha descida aos infernos surgiu quase sem dar por isso.
Uns copos com os amigos para preencher um vazio que me chamava como a vertigem chama o suicida. Uma vez em casa, já tarde, bebia mais uns quantos e ia deitar-me esquecido de mim.
Na verdade, eu odiava-me.
Queria ser outro. Um ser pleno de interioridade, brilhante como um sol, e eu, nas horas de sobriedade, via apenas um desgraçado em ressaca.
Olhava-me ao espelho e detestava o que via. Ao olhar os meus próprios olhos entrava no espaço que há por trás da superfície lisa e reflectora e sentia o tremendo peso de não encontrar coisa nenhuma.
Bebia então mais. Todos os dias mais.
Passei noites sem vir a casa. Veio o divórcio, e com ele entrei no último estágio da minha degradação. Perdi-me no vazio ainda maior das ligações esporádicas que me deixavam completamente arrasado após o relampejo do céu em ilusão e com a vontade da morte na alma. E foi precisamente quando preparava uma dose de whisky com barbitúricos para pôr um fim a tudo que a conheci.
Primeiro parecia ser uma criança a chorar, depois um gato.
Tinha já todos os comprimidos na mão mas aquele choro cortava-me o pouco que restava no fundo de mim.
- Como se pode alguém suicidar calmamente ao som disto...? - pensei.
Abri a janela do quarto que tinha para enxotar o bicho e vi então debaixo da janela o que me fez descer, cambaleando sobre a minha própria sombra.
Ali na rua estava ela. Deitada e delirando.Ainda muito nova, quase que uma criança. Em estado praticamente de coma alcoólico.Peguei nela e sem saber como levei-a para o meu quarto.Deitei-a e durante toda a noite vigiei, fiz chá, tratei dela como se me tivesse encontrado de repente num outro corpo. Agarrado a uma vida quando pouco antes queria acabar com a minha.
As horas da noite passarem-se em ansiedade, o cansaço a tomar a vez da euforia ilusória do álcool, e à medida que a noite clareava e dava lugar ás cores cruas da realidade, via nascer o dia na minha alma.
Passaram-se seis anos desde essa noite.
Ela saiu ao meio da tarde quando eu descansava da noite perdida.
Ao meu lado encontrei uma folha de papel com umas singelas palavras:
- Obrigado. Foste o meu Anjo da guarda. Salvaste-me a vida...-
Saí de casa, e procurei-a aflito por toda a parte.Pelos bares, recheados de olhares alheios e frios, que de repente assumiam tons de cinza e breu onde antes só vira cor e evasão.
Nunca mais a vi.
Gostava, então, só de encontrá-la mais uma vez que fosse.
Passou-se o tempo...Ao longo destes anos todos uma ideia tomou a pouco e pouco forma. Um novo sentido surgiu de palavras tão conhecidas como estafadas:
- ...escrever direito por linhas tortas.....-E descobri assim a pouco e pouco como aquele corpo de mulher caído na rua fora a revelação que me salvara nessa noite terrível em que o desespero quase tinha vencido a vontade e alegria de viver que são hoje o meu Eu e a minha verdade profunda.
Salvou-me da única forma que nos podemos salvar que é a partir de nós mesmos.
Nesse mesmo dia procurei os Alcoólicos Anónimos.
Refiz o caminho.
Nunca mais bebi.
Escrevo estas linhas sim, dedico-as a ela que me guarda a toda a hora.
Não sei onde está mas sei-a bem dentro do meu coração.
Foi ela o meu anjo da guarda.
Faz parte da minha história de vida que agora ponho em palavras.
Possam elas algum dia ajudar alguém...
Charlie