sábado, 22 de setembro de 2007

Folha de Diário dum Viajante


Estive agora mesmo sondando a infinita linha que separa o mar dos céus. Ali nesse ponto do convés onde a proa perfura o horizonte em investidas sucessivas e espalha os seus avanços em espumas a desfazer-se nos salpicos de lábios que o sol tem vindo a salgar no decurso de toda uma vida de mar.

Durante um instante fechei os olhos e revi-me na alegria das ilhas encontradas, na miséria e solidão dos naufrágios, no desespero da viagem perdida e no alívio final do resgate. Muitas vezes a nado, numa fuga suicida para a frente, a caminho do abismo que todos sabemos existir onde o mar acaba.

E passei todas as vezes por esse portal, por onde apenas se passa uma vez, que não tem retorno e que termina na vertigem da queda miserável onde morro e renasço em voo no grito da gaivota de céu que me acorda novamente da sesta, já a bordo de novo navio...

Agora, sentado à mesa de caneta na mão, saboreio o amargo duma bebida forte que detesto e faço uma careta de desagrado.
- Porque é que temos esta incontornável sina fazer as coisas erradas mesmo sabendo o amargo que nos deixam? Porquê este precisar de querer sempre de engolir todo o mar?
-Não nos basta com o sabe-lo salgado... -

Aborrece-me este mar chão e calmo. Quero a revolta das suas ondas ansiosas por desfazer o meu corpo, os seus ventos a rasgar as velas, a aflição de sentir nas tábuas a ranger e mastros a vergar, toda a tempestade que é a minha alma feita da teia de cordames e fogos fátuos de ilhas flutuantes avistadas nas reverberações cálidas do ar.

Já avistei muitas dessas ilhas, quase todos os homens do mar as avistaram, alguns sem nunca terem visto o mar, outros apenas mar e nunca as ilhas. Nenhum homem jamais lhes pisou o solo por mais ilhas onde tenha naufragado, iludidos com a sua descoberta.

São ilhas afortunadas, que se soltam dos fundos, entram nos sonhos e se desfazem em lágrimas e mar quando acordamos.

A minha sina é procurá-las e avistá-las sem as encontrar, numa viagem que passa, possui-las não possuindo e escutá-las não escutando, ser eterno viajante ansioso por nunca encontrar mais do que a Pessoana procura...


Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.

Fernando Pessoa


..Pouso a caneta e volto ao convés de copo na mão.
A viagem continua....


Charlie