sábado, 19 de maio de 2007

Carta sem importancia

Sábado, Dezembro 17, 2005

carta aqui deixada por charlie

Olá companheiros.
Muitos não saberão quem sou, mas devo dizer que isso não tem qualquer importância pois nem mesmo eu me lembro de ter visto o meu rosto em lado algum.
Todos os dias saio de casa com uma disposição óptima.
Dou um pontapé numa lata que esteja no caminho.
Ela é culpada de tudo.
Todas as latas que estão no caminho são culpadas.
Aprendi isso com o patrão que me mandou para a rua.
Ele é dono duma das muitas redes de Hipermercados que existe no país.
Dantes eu tinha uma pequena indústria. Ele pedia-me fornecimentos. Depois mais e mais e mais. Precisei de dinheiro, ele entrou como sócio. Inteirou-se de todos os processos e segredos de fabrico. Meteu lá mais dinheiro e a empresa cresceu. A minha parte cada vez mais pequena. Depois deu-me um pontapé. Pôs-me na rua. Da fábrica que fiz com as minhas mãos. Vieram uns seguranças. E rua com ele. Nem disseram o meu nome que dantes repetiam respeitosamente quando todos os dias entrava no escritório:
- Bom dia Sr “X.Y.Z.” Bom dia Sr “X.Y.Z.” Bom dia Sr “X.Y.Z.”........-
Outro pontapé na lataTlim tlim talong pling....ploc...badalong...
Ficou-se junto ao lancil. Bem feita para não estares no caminho. Há um senhor que passa e peço-lhe um cigarro. Acendo-o maravilhado.A gora fumo-o em charuto. Faço argolas acrobáticas no ar. E rio-me em fortes gargalhadas.Hahahahahhahaa. O charuto, este, o último, é duma caixa que ele me ofereceu no dia em que assinámos a sociedade. Se vocês tivessem visto. Veio no jornal e tudo. Houve uma festa na empresa, tudo sorrisos e horizontes cor de rosa. Garrafas de champanhe, mariscos e carnes grelhadas. Prendas para todos. Hehehee...
Vou agora entrar no Hiper cá do Bairro.
É dele. Ele é dono de tudo.
Acho que vou dar pontapés em todas as estantes e deitar coisas para o chão.He he..Estou contente ao entrar. A luz é intensa mas não vejo ainda as estantes. Só portas e paredes. Lá dentro há uns quantos clientes. Todos vestido de branco. Deve ser moda.
Mal me vêem correm para mim. Sorrio para eles. Se calhar reconheceram-me. Gritam: -“Ali está ele, como é que ele ...?”-
Não percebo o resto.
Eu não sei o meu nome...
.Agora estão ao pé de mim.
Estendo-lhes a mão.
Sempre fui uma pessoa generosa com os meus empregados e clientes. Mas eles agarram-me. Dois por trás e um à frente com uma agulha.-Assaltantes- Grito: “ Socorro!”
Não me lembro de mais nada. Não sei quanto tempo passou.
Há já um bocado que estou a escrever esta carta na parede.Não tenho caneta, nem tinta nem papel.
Mas escrevo com saliva.
É o meu passatempo.
Coisa sem importância...
Se ao menos tivesse umas estantes para deitar abaixo....

Charlie

3 comentários:

Anônimo disse...

há um toque de Ionesco nisto (referencial ao absurdo das condições humanas). Gostei.


efe | 17.12.05 - 7:45 pm | #

Anônimo disse...

Caro Charlie
Gostei imenso desta carta, até porque, metaforicamente, está cheia de uma grande verdade.
Um abraço
Daniel
Daniel Aladiah | Homepage | 17.12.05 - 8:20 pm | #

Anônimo disse...

não tenho estantes mas tenho palavras que podem descrever os meus pontapés às estantes.
Cândida | 02.01.06 - 11:31 pm | #

Gravatar Apeteceu-me continuar...

Todo o silêncio recheado de beijos
é uma orquestra dos sentidos
em apoteose
vivenciando a sinfonia perfeita
rejubilando
no prazer SUBLIME...

Perdoa a intromissão, mas, não resisti...

beijinhos blogados
papoilarubra | Homepage | 28.12.05 - 1:04 am | #

Gravatar Todo o silêncio recheado de beijos é uma orquestra dos sentidos em apoteose
charlie | 27.12.05 - 8:03 pm | #

Gravatar Charlie, gostaria que as minhas mãos soubessem teclar as palavras certas e solidárias para contigo. Como não as encontro dentro de mim… apenas partilho o meu silencio... que não é mudo... mas completamente repleto de beijos...

Adoro ler-te...
papoilarubra | 27.12.05 - 3:21 am | #

Gravatar A dor profunda curada em doses de absurdo.
Lembrar-se do seu nome é regressar à injustiça, ao sofrimento do Eu que lhe foi roubado.
Ele é outro que não já sofre.
É ninguém, mas dono da sua loucura.
Como diz Torga: " És homem não te esqueças, só é tua a loucura onde com lucidez te reconheças."
Obrigado pelas palavras, e votos de Boas Festas, que retribuo, seja lá o que isso queira dizer...
charlie | 18.12.05 - 11:07 am | #

Gravatar Gosto muito destes personagens absurdos que nos aparecem como quem dá umpontapé numa lata. Concordo com a opinião do Efe. E o escrever a carta enquanto a acção se passa é genial. Beijos Charlie. Já te desejei feliz Natal?
***
LolaViola | Homepage | 18.12.05 - 10:17 am | #