terça-feira, 24 de maio de 2011

Zabiba


ZABIBA
uva passa










Zabiba trouxe o cântaro cheio de água para a tenda.
A distância entre a nascente e o acampamento era de pouco mais de cem metros, que ela fez com algum esforço.
Embora o parco vento soprasse ainda com apontamentos da frescura da noite, o sol acabado de nascer com menos de uma hora de reinado, mostrava já a inclemência da sua realeza.
Zabiba jamais havia visto mais que poços e nascentes.
Agora com doze anos e aproximando-se a idade em que se tornaria mulher perguntou à mãe:
- É verdade, mãe que há sítios onde a água é tanta que forma extensões assim grandes como este Sahara que Allah quis que fosse a nossa casa?-
A mãe olhou para ela com um olhar mortiço e cansado de anos a fio de heróica resistência ao deserto.
O pensamento levou-a para longe. Enquanto preparava o chá, que é um ritual de horas nos povos do deserto, - a primeira chávena bebida amarga como a vida, a segunda quente como o amor e a última, doce como a morte, - deambulou pelos tempos idos. Vieram-lhe à memória os dias em que conhecera o seu marido. Ela fora a sua primeira esposa. E após dois anos do que lhe pareceram ser de felicidade, um parto difícil seguido da morte da criança tinha-lhe trazido uma esterilidade quase absoluta. O marido tinha arranjado mais duas esposas, habilmente negociadas em trocas de ovelhas e camelos. Devido à sua esterilidade o marido procurava-a com muito menos frequência. Mas quisera Allah dar-lhe a graça duma filha quando não esperava já nada da vida.
- Zabiba !- Pôs-lhe o pai de imediato como metáfora ao milagre do fruto nascido duma mãe seca.
A água já estava a ferver mas Zulmira estava tão absorvida em pensamentos que não deu por isso.

Zabiba chamou a mãe.

- Mãe, tens de passar a água. Já está a ferver...e diz-me....-
- Ghaniyah! - disse a mãe despertando do sonho. E Zabiba deu meia volta dançando sobre si mesma. E rindo-se abaixou-se outra vez e disse.
- Já dancei. Agora diz-me se é verdade...-
Zulmira olhou para a filha. Nunca havia visto mais água do que a que se pode observar nos tempo das chuvas, mas o seu homem já estivera em Timbuktu, onde passa o rio Niger. Em pleno deserto há milénios que existe uma cidade que chegou a ser considerada lendária pelos próprios povos do deserto. Ela também nunca havia visto mais água do que aquela que escorre efemeramente pelos Wadis nas alturas em que chove e isso já havia sido há muito ainda Zabiba era pequena.

- Sim - disse .- Há um sítio onde a água é abundante como a areia que nos envolve. Toda a água da chuva corre para o paraíso. Lá há plantas de todos os tipos, muito maiores que as ervas e arbustos que as nossas ovelhas comem. Do tamanho das palmeiras nos oásis mas muito diferentes delas e muito verdes. É onde vive Allah e as pessoas em seu louvor fizeram arranjos com as plantas e construíram jardins. A água é tanta que as pessoas atiram-se para dentro dela lavando a alma e purificando o corpo.
A frescura está sempre presente e os homens amam as mulheres.....-

Calou-se de repente enquanto o seu olhar se perdia novamente no esfumar dos sonhos.
Depois repetiu só para si;

-.....Onde os homens amam as mulheres...-


Foto:C. Deo



Charlie

6 comentários:

Vera Carvalho disse...

Como é agradável ler-te, meu querido. O deserto sempre me despertou sentimentos antagónicos, a imensidão e a falta, a aridez e o encanto, o sonho e a realidade... Este conto faz-me pensar na importância que damos àquilo que nos é escasso e a futilidade com que absorvemos aquilo que para nós parece inesgotável.
Deixo-te um abraço apertado e saudades.

Charlie disse...

Olá Verinha linda. :)
É verdade...partilhamos sensibilidades, o mundo dos sonhos- tangente à realidade ou quiçá o inverso: sonhamos quando pensamos estar despertos e vivemos quando os olhos se fecham e criam asas.
As saudades? Essas são boas para matar com um grande abraço.
Miminho, miga :)*****

Rafael Castellar das Neves disse...

Muito bom, gostei daqui!!

[]s

Miguel Almeida disse...

Caro Charlie, bons olhos o vejam!! Já há algum tempo que não nos presenteava com as suas histórias...
Para quando um livro? E não invente desculpas, que não as a aceito!
Abraço.

Charlie disse...

Ó shôr Miguél d'Almeida...
As aventuras editoriais estão agendadas para data oportuna.
Merci bien pela visita a esta mesa desarrumada e cheia de papeis.

ana maria costa disse...

Como é bom saber que as amizades não se perdem no tempo. são nuvens que aparecem, vão e aparecem.

Gostaria que voltasses com a tua prosa e poesia à lista que ainda é tua e, sempre serás moderador como a Vera também. TODOS.

meu jinho