
Voltou a acontecer.
Sem que eu tivesse feito nada para que isso sucedesse, pelo contrário, - evitando os meus pensamentos na hora de deitar-me - tudo se repetiu uma vez mais.
Incessantemente e de maneira constante, noite após noite, de forma contínua e ligada em episódios.
Tenho este sonho sempre igual há tantos anos que já nem me lembro bem do primeiro dia em que comecei a sonhá-lo.
Sonho que estou só.
Completamente só numa ilha que também seria solitária se não fosse ter sido eu a naufragar ao largo dela, na ocasião em que começaram os meus pesadelos, e ser assim o seu único habitante.
Durante o dia estou bem, nas minhas tarefas diárias, junto aos meus amigos e à mulher que amo com a mesma paixão e entrega há mais de trinta anos. Mas mal fecho os olhos eis que desperto nesta ilha onde me encontro agora a escrever-vos.
Na manhã - cuja data não me recordo - em que sonhei ter naufragado, íamos todos juntos atravessando o Pacífico no iate que eu tinha nessa altura.
Lembro-me de tal forma de tudo o que aconteceu neste meu sonho como se tivesse sonhado hoje.
Tinha estado com ela na proa olhando para esta ilha que agora os meus sonhos aprisionaram. Beijávamo-nos e o sabor da sua pele sabia-me ao sal do mar que eu amo desde criança e que agora é o meu carcereiro. Passei-lhe as mãos pelos cabelos, dedos a deslizar suavemente, descendo pelas ondas do nosso querer. Naveguei língua e boca pelo seu pescoço e saboreei o mar ainda mais intensamente. Abraçámo-nos e senti-a toda mulher encostada a mim. Depois descemos para a cabine enquanto eles se riam com os seus copos de Martini nas mãos e falavam uns com os outros. Disse para tomarem conta do leme e que se aproximassem com cuidado da ilha.
Depois..
Só me lembro da sua nudez e corpo quente, tão desejoso quanto o meu e o tremendo encontrão que dei com a cabeça quando o barco encalhou numa enorme pedra submersa e se partiu em dois.
Dei acordo de mim já na areia recheada de destroços e dos corpos de dois dos meus amigos e da minha mulher.
Sepultei-os a pouca distância da praia e visito-os todos os dias.
Meu Deus! Cada vez que relembro esta parte do meu primeiro pesadelo fico numa tremenda angústia pese embora a distância imensa levada no tempo.
Depois vem a rotina neste sonho sempre igual. Acrescento mais um traço; mais um dia, numa tábua dos destroços com que fiz a cabana. Dou voltas pela ilha solitária, colho frutos, pesco qualquer coisa, ponho umas flores nas campas e subo à nascente mais para o interior para encher uma vasilha com água.
Já tenho falado à minha mulher no tormento que à noite me assola. Ela ri-se com o mesmo sorriso que não envelheceu nem um dia decorridos que são mais de três décadas. Bem ao contrário do que se passa neste sonho em que tudo ganhou o cinzento de trinta e muitos anos aos quais quase perdi o conto, apesar das marcas diárias com que colecciono os dias passados.
O meu cabelo está enorme, tenho umas barbas até à cintura, estou desdentado e extremamente magro, e vi bem o meu mísero estado, de rugas profundas e roupas em farrapos, quando me pus a reparar na figura reflectida na superfície da água da vasilha.
Estou velho, tenho envelhecido dia após dia dentro deste pesadelo que vivo intensamente e que não me larga.

Depois o cansaço do sonho vence-me e acordo com júbilo longe desta ilha, junto ao seu corpo de mulher entrelaçado com o meu sob os mesmos lençóis.
Fazemos amor, damos duche juntos e vejo ao espelho como estou jovem...
Ai como gostaria que me libertassem desta prisão que me agarra mal os meus olhos se fecham. Por isso escrevo esta carta. Vou encerrá-la dentro desta garrafa e atirá-la ao oceano..
Que bons ventos e marés a levem onde outros sonhos me façam noutro sonho despertar...