Um conto, a propósito da celebração da Primavera.
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A BRUXA.
Poisou uma vez mais a escova na minúscula mesa que fazia as vezes de toucador e que um velho espelho encimava.
Frascos e mais frascos com as mais variadas ervas enchiam prateleiras toscas de madeira, algumas ameaçando estar prestes a sucumbir.
Molhos de ervas ocupavam também partes apreciáveis da superfície da única mesa no compartimento ao lado e que fazia de cozinha. Era também na cozinha que estava a única porta daquele casebre
Algumas misturas estavam no chão, em potes de barro, guardadas em preparados
Lentamente afastou as abas da peça de roupa que lhe cobria o peito e mirou-se.
Há quanto tempo …
Desde que o seu homem morrera.
De acidente disseram, - soou na aldeia-, logo ali a pouco mais de cem metros que agora o Inverno tornavam mais difíceis de passar.
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Despertou dos seus pensamentos com umas pancadas na porta.
Ajeitou depressa a roupa, e levantou-se um pouco irritada.
Raio dos miúdos, outra vez.
Mesmo agora no Inverno em que as veredas estão enlameadas não desistem.
Não tarda, começam a gritar como fazem sempre antes de fugir e atirar umas pedras.
-Bruxa! Bruxa..
Fogem a toda a brida quando abro a porta e vão gritando:
-Fujam que vem aí a bruxa…
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As pancadas na porta repetiram-se
Mas não parecia ser mais do que uma pessoa.
Talvez alguém a querer encomendar algum remédio para os achaques, pensou.
Abriu a porta e olhou para baixo.
Uma criança olhava-a com os seus olhos de menina, muito grandes, directamente ao fundo da alma daquela mulher solitária e magoada.
Olharam-se em silêncio.
Depois, a mulher mudou a figuração do rosto, abaixou-se e num sorriso doce perguntou-
- O que precisas, menina.
Foi quando a criança irrompeu num pranto.
- A minha mãe…O senhor padre já lhe deu a extrema unção..
- Mas o que é que ela tem?
A criança lá explicou e com mais umas perguntas a mulher retirou-se voltando passados alguns minutos com um pequeno volume e um frasco.
- Toma atenção: isto é muito forte: dá já uma colher de sopa deste frasco e obriga-a a beber do chá que fizerem com esta mistura de ervas. Pode até não conseguir beber por estar muito fraca, mas com uma colher dêem-lhe a pouco e pouco até perfazer o volume de uma caneca.
De hora a hora tem de tomar uma caneca deste chá, e de duas em duas horas no primeiro dia uma colher do remédio do frasco.
Depois, se ela melhorar, vão dando três colheres por dia até acabar o frasco.
Depois, traz o frasco de volta por favor.
-
Mais de uma semana tinha já passado e seria já perto da meia noite quando acordou com fortes ruídos no exterior.
Vozes de homem, uma ou outra de mulher.
Vestiu-se à pressa e abrindo o postigo da porta olhou meio ensonada, enfrentando o que era já uma gritaria.
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À frente de uma pequena multidão, o padre vociferava:
- É esta a filha do Demo! A que se atreve a interferir na obra de Deus.
- Mas o que é que fiz? Atreveu-se a mulher?
- Ainda perguntas, infame herege? Tiraste uma alma ao Senhor, fazendo-a perder-se para sempre nas fogueiras do Inferno!
Aquela alma que os braços do Senhor já acolhiam no seu seio foi arrancada pela força de uma poção do Demo!
E dizendo isto mostrou o frasco vazio que a criança tinha levado uma semana antes.
-Bruxa! Bruxa! Bruxa! Gritava agora a multidão.
- Queimem a bruxa. Disse o padre enquanto abria o missal que depois segurou com uma só mão enquanto com a outra fazia o sinal da cruz, proferindo umas palavras que ninguém já ouvia.
- Queimemos a bruxa! Queimemos a bruxa!
E dizendo isto começaram a atirar os archotes para cima da coberta da casa.
Outros aproximaram-se do casebre despejando líquidos para cima dos troncos de madeira que faziam de parede exterior.
À pressa a mulher fechou o postigo, cerrou as trancas da porta e retirou-se para o quarto.
Descobriu a cabeça e mirou-se ao espelho ajeitando os longos cabelos.
Calmamente retirou um pequeno frasco que guardava numa gaveta da mesa e engoliu o conteúdo de uma só vez.
Afastou as abas da vestimenta, deixou cair toda a roupa e mirou o seu corpo desnudo enquanto as chamas já irrompiam pelas tábuas do quarto.
Fechou os olhos e sorriu sentindo todo o seu corpo sucumbir.
Estava feliz, num doce crescendo de flutuação etérea.
Finalmente iria ter com o seu amado...
Charlie
(Carlos Luanda)
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