sábado, 23 de junho de 2007

Carta dentro duma garrafa.

De novo...
Voltou a acontecer.
Sem que eu tivesse feito nada para que isso sucedesse, pelo contrário, - evitando os meus pensamentos na hora de deitar-me - tudo se repetiu uma vez mais.
Incessantemente e de maneira constante, noite após noite, de forma contínua e ligada em episódios.
Tenho este sonho sempre igual há tantos anos que já nem me lembro bem do primeiro dia em que comecei a sonhá-lo.
Sonho que estou só.
Completamente só numa ilha que também seria solitária se não fosse ter sido eu a naufragar ao largo dela, na ocasião em que começaram os meus pesadelos, e ser assim o seu único habitante.
Durante o dia estou bem, nas minhas tarefas diárias, junto aos meus amigos e à mulher que amo com a mesma paixão e entrega há mais de trinta anos. Mas mal fecho os olhos eis que desperto nesta ilha onde me encontro agora a escrever-vos.
Na manhã - cuja data não me recordo - em que sonhei ter naufragado, íamos todos juntos atravessando o Pacífico no iate que eu tinha nessa altura.
Lembro-me de tal forma de tudo o que aconteceu neste meu sonho como se tivesse sonhado hoje.
Tinha estado com ela na proa olhando para esta ilha que agora os meus sonhos aprisionaram. Beijávamo-nos e o sabor da sua pele sabia-me ao sal do mar que eu amo desde criança e que agora é o meu carcereiro. Passei-lhe as mãos pelos cabelos, dedos a deslizar suavemente, descendo pelas ondas do nosso querer. Naveguei língua e boca pelo seu pescoço e saboreei o mar ainda mais intensamente. Abraçámo-nos e senti-a toda mulher encostada a mim. Depois descemos para a cabine enquanto eles se riam com os seus copos de Martini nas mãos e falavam uns com os outros. Disse para tomarem conta do leme e que se aproximassem com cuidado da ilha.
Depois..
Só me lembro da sua nudez e corpo quente, tão desejoso quanto o meu e o tremendo encontrão que dei com a cabeça quando o barco encalhou numa enorme pedra submersa e se partiu em dois.
Dei acordo de mim já na areia recheada de destroços e dos corpos de dois dos meus amigos e da minha mulher.
Sepultei-os a pouca distância da praia e visito-os todos os dias.
Meu Deus! Cada vez que relembro esta parte do meu primeiro pesadelo fico numa tremenda angústia pese embora a distância imensa levada no tempo.
Depois vem a rotina neste sonho sempre igual. Acrescento mais um traço; mais um dia, numa tábua dos destroços com que fiz a cabana. Dou voltas pela ilha solitária, colho frutos, pesco qualquer coisa, ponho umas flores nas campas e subo à nascente mais para o interior para encher uma vasilha com água.
Já tenho falado à minha mulher no tormento que à noite me assola. Ela ri-se com o mesmo sorriso que não envelheceu nem um dia decorridos que são mais de três décadas. Bem ao contrário do que se passa neste sonho em que tudo ganhou o cinzento de trinta e muitos anos aos quais quase perdi o conto, apesar das marcas diárias com que colecciono os dias passados.
O meu cabelo está enorme, tenho umas barbas até à cintura, estou desdentado e extremamente magro, e vi bem o meu mísero estado, de rugas profundas e roupas em farrapos, quando me pus a reparar na figura reflectida na superfície da água da vasilha.
Estou velho, tenho envelhecido dia após dia dentro deste pesadelo que vivo intensamente e que não me larga.
Depois o cansaço do sonho vence-me e acordo com júbilo longe desta ilha, junto ao seu corpo de mulher entrelaçado com o meu sob os mesmos lençóis.
Fazemos amor, damos duche juntos e vejo ao espelho como estou jovem...
Ai como gostaria que me libertassem desta prisão que me agarra mal os meus olhos se fecham. Por isso escrevo esta carta. Vou encerrá-la dentro desta garrafa e atirá-la ao oceano..
Que bons ventos e marés a levem onde outros sonhos me façam noutro sonho despertar...

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Carta dum moribundo…

Carta deixada aqui por Charlie


Escrevo estas linhas com a absoluta sensação de estar a viver os últimos instantes do sopro vital que o Criador insuflou nestes restos eternos que a Mãe Terra há-de absorver e transformar em outras formas de vida no seio do seu generoso e quente ventre materno.
Ah, como me dói todo o corpo!
Não é uma dor localizada em lado algum; é antes o esvair lento do meu interior a espalhar-se pelo espaço, ferindo todos os poros à medida que vai rompendo a fina barreira de mim mesmo e diluindo-se em nada, nos nadas de que são feitos os indefinidos e infinitos mundos etéreos dos espíritos.

Está cá um destes frios!...
Sinto os arrepios a vir dentro de mim, do interior mais profundo e insondável desde onde a alma alimenta a seiva dos ossos…
Ai se soubessem como me custa a respirar…….
Mas vou devagar. Ainda tenho que acabar estas linhas e sinto-me fraco.
Lembro-me como já passei por situações semelhantes, em que todo o meu corpo se ria da torpeza da senhora da foice vestida de negro. Ri-me quando me levaram para o Hospital, a esvair-me em sangue depois de ter sido atingido por uma bala quase à queima-roupa. Mas todo o meu corpo oferecia vida e sangue! E ri-me da ferida grave com a mesma leveza com que mergulhava nos corpos das putas uma e outra vez sem vacilar, em orgias desregradas, sem que alguma vez o meu corpo se sentisse e me traísse dos exageros. Agora é diferente, mas nessa altura?!... Todo eu era tesão à flor da pele e fontanário de vida e sangue inesgotáveis.
Voltou a acontecer mais tarde, voltei a ver a senhora da foice noutras rixas e acidentes, e o escarnecer típico e arrogante da imortalidade juvenil sobrepôs-se sempre ao tétrico da sua presença.

Depois conheci-te. Sem esperar, numa altura em que eu, sentado debaixo da macieira, observando o sol em declínio a preparar o poiso no horizonte, descansava o corpo de guerreiro e a guerra se passava em mim na queda contínua das cascatas de ideias.
Lembro-me das flores que te ofereci…
- Um dia ofereces-me flores? – Perguntastes-me uma vez em tom de desejo, e eu
respondi-te com o brilho do fogo na alma, que te daria um jardim.
Enchi-te o gabinete de flores. Lembras-te? Eram às dezenas e dezenas de ramos e arranjos de todas as espécies. De tal forma exagerada que deixou de haver lugar para mais nada. Eu fui sempre assim. Enchi-te a vida de tal maneira, que ficaste sem espaço para ti mesma. Telefonaste-me num rir nervoso, um misto de ternura e desconforto:
- Não existes! - Disseras. Hehehe....

Rio-me e tusso num esgar. Sinto-me a acabar, ai....
A seguir, morreste. Assim de repente. Num piscar de olhos quando me deixei afrouxar num momento fugaz do meu cansaço. Depois da praia nos ter servido de toalha onde comíamos o mar em garfadas de sol e saliva. Depois das horas passados juntos nos terem sabido apenas a minutos. Do último beijo do - Até já, - ter o sabor intenso ao sal da Saudade de séculos. Morreste sem que nunca mais te tivesse visto. A morte dói mais quando nos brinda com a ausência dum corpo a quem possamos abraçar na despedida.
Ainda te procurei meses a fio, esquecendo que eras apenas um fantasma, o lado de lá dum céu sem luar. Um mero rasgão de dor que fica quando nos roubam uma jóia e no seu lugar fica um buraco no peito.
Agora que me sinto finar, nem me dói mais a perda. Sei que para onde vou, não existem memórias e que renascerei livre de mim e do peso que arrasto.

Toc-toc-toc....
Batem à porta. Nem preciso de perguntar quem aí vem. Sei que é ela, a senhora da foice, de negro vestida. A porta range ao de leve e uma estranha luz invade muito docemente o meu quarto de homem só. O vulto de quem escarneci tanta vez pára junto aos pés da cama. Estou calmo, muito calmo e miro-a com a visão turva e semicerrada duma grande sensação de paz.
Lentamente afasta o capuz que lhe esconde o rosto e a pouco e pouco um tremor intenso toma-me o corpo à medida que se vai descobrindo. Depois, com os olhos tomados de espanto olho e volto a olhar para querer acreditar no que não quero crer. Docemente a mão estica-se na minha direcção e caio na verdade quando a voz que diz: - Vem - é a mesma que em tempos me dissera a rir que eu não existia quando lhe enchera a vida de flores...

quarta-feira, 6 de junho de 2007

Aquela tarde de Sábado...


Segunda-feira, Julho 24, 2006


Estava uma tarde de calor, dessas que apetecem quando os corpos fartos de Inverno se dão ao que ainda não é o castigo em que o sol se torna quando chega o pino do estio.
Estacionei o carro no parque do lado de lá da linha, quase sob a imensa estrutura de ferro que transforma os dois lados do rio num só e faz, das várias antigas povoações antes separadas pelo rio e pela História, uma só e imensa cidade.
Quem se aventura pelas docas de Alcântara em pleno dia sabe que não encontra o mundo que a noite se encarrega de inventar, mas nós, abraçados e com mais sol nos olhos que luz havia à beira rio, pouco nos importámos com isso. Todo o nosso envolvimento enchia o ar de magia e cor. Incendiávamos os néons e os sorrisos dos que de passagem nos miravam. Beijámo-nos com doçura e encanto enquanto sentíamos os nossos corpos a fundir-se no mesmo querer, no mesmo gozo de estarmos juntos, no mesmo desejo de parar o tempo para sempre na maré cheia deste mar em rio que era nosso.
- Gosto tanto de ti... - repetimos um para o outro, e rimos de seguida.
Fomos comer uma coisita qualquer, ligeira, umas saladas frias, sentados frente a frente de olhos nos olhos, vivendo um momento intenso que só os seres apaixonados sabem saborear. De mãos nas mãos rindo dos pequenos nadas que são tão importantes como as palavras: - Amo-te - que repetíamos a toda a hora, aumentando o brilho dos nossos olhos cada vez que o afirmávamos. Contámos pequenas coisas, segredos, que após tanto tempo de relacionamento, continuam a chegar aos nossos cais das descobertas onde descobrimos, em cada volta descoberta e confidenciada, que nos amamos mais e mais, numa viagem que só agora as nossas naus encetaram.
Levantámo-nos para passear um pouco. Abraçados pela cintura enquanto umas gotículas de suor se iam formando entre nós, a colar-nos e a selar os nossos corpos, tal como uma hora antes, esse suor tinha sido o mar onde navegáramos as almas em tempestade e entrega e onde seláramos com amor intenso um instante no infinito da eternidade.
Demos connosco já sob a sombra da imensa estrutura metálica, à beirinha, onde a terra-mulher se abre à penetração do mar quando a maré está de subida para, horas depois, ser o mar a receber no orgasmo, construído a dois, a torrente de água doce em espumas, Tágides em volúpias, num rio subitamente penetrante no mar-mulher imenso que se lhe abre.
Abraçámo-nos sentindo toda a força da natureza a tomar conta da nossa união, dos corpos em desejo e mergulhámos de olhos fechados no oceano que os nossos lábios davam ao mundo. Disse-lhe umas palavras quase sussurradas ao ouvido, quentes e íntimas, enquanto nos apertávamos mais e mais, ela mar e eu rio, eu tempestade em crescente e ela abrigo em fogo.
Riu-se sem abrir os olhos:
- Gosto da tua voz no meu ouvido e na minha vida...-
- A minha voz não existe, amor. A minha voz és tu quando respiras...-
Fez-se um pequeno silêncio e depois ela agarrou-se bem a mim e disse:
- Vamos... apetece-me fazer amor...-

Somos do mesmo mar

Terça-feira, Agosto 15, 2006

Somos do mesmo mar...

Olhei junto a ela para a vastidão da distância que cabia toda num olhar.
As almas unidas num só gozo nesse maravilhoso poema de sermos as asas que por cima de nós criavam as pontes abertas para o infinito.
Até onde a vista alcançava, fundindo-se no horizonte que abria a porta do mais além, inventávamos o Mundo. Com as cores dos nossos sorrisos, iluminado com o brilho que o sol tomava emprestado aos olhos, os teus e os meus, e com os sons das ondas que estalavam nos picos das cristas em línguas e lábios.

- Sabes que gosto cada dia mais de ti, meu amor? – Riu-se e encostou o corpo mais a mim, os cabelos negros junto à minha face que eu afagava em beijos suaves. Senti-lhe o sexo, desejoso e macio, e as formas e aromas do seu corpo de mulher a inebriar-me os sentidos. Meu Deus como eu a amo! Saibam que nunca amei um ser humano com a intensidade e querer com que me entrego a ela, com a vontade infinita de possui-la uma e outra vez, sem cansaço, sem espera. Com uma dedicação completa e desejo de mais e mais amor que me surpreenderiam não fora a sensação única de ter descoberto naquela mulher a minha predestinação como homem. Enquanto nos encostávamos bem um ao outro num mesmo abraço firme perdidos na enorme imensidão do amor, num só desejo de nunca mais sermos encontrados, deixava o espírito voar pela paisagem infinita que do cimo da falésia conquistava todo o universo.
Tenho uma relação com o mar que me vem nos genes. Nasci junto ao mar, e foi o mar o meu primeiro contacto com o infinito e com o sonho.
Lembro-me da primeira impressão que estreou o álbum interior das minhas lembranças duradouras. Há factores que nos ficam na memória com uma força tremenda. Foi o que decorreu dum acontecimento numa manhã, era eu então ainda criança de meses.
Pus-me de pé pela primeira vez na cama e pela janela aberta, descobri a imensidão do mar. Estive, sei lá quanto tempo, fitando o azul-turquesa transparente desses mares quentes do sul que se diluíam na distância em tons progressivamente mais carregados e que recortavam depois, numa linha fina, a clareza novamente azul em luz do céu.
Não guardo memórias de sons, de rostos, de cheiros ou gostos dessa idade. Nem me lembro, dessa altura da vida, sequer muito nitidamente do rosto da minha mãe, nem de coisas que aconteceram antes ou depois. Só me lembro desse mar imenso que trago na minha alma desde então e que fez de mim um solitário a navegar na vida procurando a outra alma que estivesse navegando sob a profundeza do mesmo olhar...
Olhei para ela e disse-lhe isso mesmo. Os nossos olhares gémeos, a emoção do infinito sonho lavado em espuma e azul. Beijámo-nos ternamente no alto da falésia, num pico do Mundo. Depois peguei-a ao colo e ela pôs-me os braços à volta do pescoço.
- O meu pai era marinheiro…- Segredou-me ao ouvido enquanto os sons da sua voz se misturavam com o vento de sabor a sal na sinfonia das cordas e velâmes que os fios dos seus cabelos infinitavam.
Encostámo-nos bem um ao outro, num abraço sem fim, de olhos fechados e abertos para o interior, para a mesma alma, para o mesmo desejo.
Mergulhámos no mar alto e amámo-nos toda a tarde, uma e outra vez na viagem deste veleiro sem fim rumo à Eternidade. Com a força com que o mar se entrega em orgasmos infindos contra os rochedos, onda após onda, maré após maré, num naufrágio contínuo, num eterno renascer…