sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Ata.


Texto decifrado entre as nervuras das rochas nas cavernas da invenção da memória


Ata olhou uma vez mais para o vulto que a noite absorvia, com uma quase sofreguidão, à medida que ele se afastava, caminhando um pouco destacado do grupo de homens.
Na caverna, de repente tornada enorme, os restantes membros da tribo ajeitavam-se em redor dos restos das fogueiras projectando efémeras e grotescas sombras pelas paredes. Enormes e assustadores espíritos emergindo de impensáveis ancestralidades, eternos e intemporais...

Org voltou-se fitando o olhar de Ata por um breve instante antes de sumir-se na escuridão que uma lua cheia prestes a romper o horizonte ainda não iluminava.
Iam para a caçada. Preparar as armadilhas para onde encaminhavam as peças a
abater em salvas de flechas e machadadas.
Todas as luas eles saíam passando vários dias e noites fora. Regressavam depois com a carne que a seguir elas, as mulheres, tratavam e preparavam nas fogueiras.
Inspirou fundo e olhou mais uma vez para Cuítsh. Era jóvem, tão jovem quanto
ela e por isso ainda não ia ás caçadas.
Org tinha-a trazido para ali trocando-a por outras mulheres da sua própria tribo como de resto era hábito no vale onde ela tinha nascido.
Chegara um dia ao acampamento onde vivera sempre com os pais. Com ele tantas mulheres como dedos tinha numa mão e após longa discussão e entrega de objectos e amuletos de parte a parte, sentiu-se de repente no meio do grupo juntamente com mais quatro
moças que com ela tinham crescido.
Quase de imediato Org pegara-lhe no braço e pelo cabelo rindo-se enquanto em agitação e no meio das lágrimas e gritos ela olhara numa súplica para a sua mãe que lhe acenara sem expressão alguma no rosto. O coração batera-lhe com violência e ao início, durante dias a fio, chorara no fundo da caverna sem comer nem beber nem, ao menos, levantar os olhos de entre os braços onde mergulhara a cabeça.

Org era um homem bastante mais velho. Chegara por ferozes disputas a chefe da
tribo e apresentava o corpo coberto de cicatrizes.
Brusco e dominador, não se lhe conheciam filhos.
Havia experimentado muitas mulheres, mantinha ainda algumas mas nunca alguma
lhe dera descendência.
Agora porém, desta vez, estava exultante.
Ata começara a mudar as formas do seu abdómen, tinha outro cheiro, e Org não
cabia em si de contente.
Nas últimas luas tinha aumentado a quantidade de caça trazida.
Presenteava-a com as melhores partes das peças abatidas, saía para trazer-lhe frutos de cheiro e sabores doces e preparara-lhe agora um recanto com peles e penas confortáveis.

Ata suspirou mais uma vez e olhou para Cuítsh, disfarçando um curto sinal por
entre as expressões veladas do rosto...

A lua enchia agora todo o vale a seus pés.
Bem lá ao fundo, por entre ramos da vegetação algo rasteira via-se por uma nesga a entrada da caverna.
Abrigados numa dobra do terreno e deitados ao lado um do outro no que restava dum abraço, Cuítsh e Ata, de corpos gratos e suados, miravam o infinito sob o céu estrelado, enquanto ela de mão sobre o ventre, afagava o Neolítico em suaves passagens de Eternidade e poesia...

Charlie

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Folha do Diário dum Soldado,

No momento em que escrevo estas linhas, corro o risco sério duma punição ou mesmo de ser abatido pelo inimigo. Tenho que estar atento, e escrever é uma coisa que distrai a atenção.
São quatro da manhã e há uma meia hora que entrei neste turno de sentinela.
No entanto, durante toda a noite, não consegui ainda conciliar um só momento de sono.
À minha frente apenas vejo uns olhos azuis que me perseguem por todo o lado. São iguais ao da Marlene, a minha namorada, com quem casei duas semanas antes de ser enviado para a frente e entrar em combate.

Acabei de fazer uma pequena pausa para perscrutar a escuridão que uma lua em quarto minguante por trás dum céu em farrapos de nuvens negras mal consegue iluminar. Pareceu-me ter ouvido um ruído, mas afinal, era apenas um mocho que após ter capturado a presa, passou a rasar o meu capacete rumo à mata na colina à nossa retaguarda.

Esta manhã recebemos ordens para avançar em direcção às trincheiras que agora ocupamos. Durante o avanço tínhamos que tomar um ninho de metralhadoras que estava instalada no topo duma pequena elevação do terreno a partir de onde dominava todo o vale. Uma cobertura de fogo de morteiro abriria o passo ao nosso avanço.
Felizmente conseguimos a nova posição com poucas baixas.
Após a relativamente rápida tomada do ponto, a fustigação das trincheiras adversárias fizeram os restantes bater em retirada, o que facilitou o assalto final às suas posições.
O meu pelotão ficou encarregue de fazer a limpeza do terreno, capturando armamento, neutralizando elementos inimigos, detendo-os com ordens de serem abatidos em caso de resistência.
No ninho, constituído por uma pequena escavação a meia altura, rodeado de sacos de areia e pedras, apenas havia umas caixas de munição espalhadas, duas peças pesadas caídas assim como algumas ligeiras. Num dos lados, estava um corpo despedaçado; um dos morteiros tinha atingido quase em cheio o seu alvo e os sacos estavam parcialmente deslocados e rebentados com o conteúdo espalhado em seu redor.
Reparei contudo como no chão, mole devido à chuva miudinha que caíra na noite anterior, umas pegadas de botas levavam a direcção do bosque na encosta que agora fica por trás das nossas linhas. Segui as marcas no solo e, ainda antes de entrar no arvoredo, umas manchas de sangue num arbusto certificaram-me de que estava ferido. Talvez devido a estilhaços aquando da queda do morteiro que atingira o seu camarada. Ou talvez ainda antes, atingido por um projéctil e na iminência da sorte do combate lhe ser desfavorável, tivessem feito com que ele se retirasse na esperança de atingir um local onde se sentisse em segurança.
Avancei com cautelas, a adrenalina a ferver nas veias, abrigando-me em cada lance.
Foi quando inesperadamente o vi. Quase de caras.
Senti o sangue gelar.
Imóvel e encostado a um tronco, debilitado, estava como que esperando por mim. Nem dera quase por ele, poderia perfeitamente ter-me abatido, mas não...
Por detrás duma expressão assustada, de olhos azuis e cabelo louro com laivos negros tal como os de Marlene, estava o que era ainda um rapazinho. - Certamente um voluntário. - pensei. Apresentava um ar de cansaço e segurava a arma apontada na minha direcção com as duas mãos junto à cintura e a coronha apoiada na árvore onde se encostara. Ordenou-me para largar a minha. Respondi-lhe que estava detido, que as nossas forças tinham tomado as suas posições e que agora era meu prisioneiro.
Umas lágrimas espreitaram-lhe aos olhos, ao mesmo tempo que denunciava na inspiração o tremor que lhe tomava o corpo. Por um momento senti um alívio da pressão quando ele abaixou a metralhadora e o olhar num gesto que me pareceu de rendição.
Avancei e foi então quando se deu o desenlace. Dando-se conta de que me aproximava, levantou novamente a cabeça e voltou a apontar a arma, abrindo muito os olhos enquanto subia os braços para uma posição de ponto de mira e de dedo no gatilho. A boca a abrir-se como ao ponto de gritar algo.


Há ocasiões, como esta que sinto agora, em que tudo faríamos para alterar os rumos dos acontecimentos, invertendo-os até muitas vezes, mas naquele instante de tensão em que um momento tem o tamanho do infinito, mas é em simultâneo o infinitésimo que nos separa a vida da morte, venceu a besta. Toda a subtileza dum pensamento, toda a beleza dum poema, apenas o são se perpetuados no conhecimento contínuo, no estado de consciência, na memória de tudo e de nós mesmos, acrescentados em todos os instantes de estar vivo; sobreviver...


Premi instintivamente o indicador. O estampido soado a um menos dum metro de mim atingiu-o em cheio no peito, fazendo-o encostar-se à árvore pela qual escorregou caindo depois para um dos lados. Corri para ele, confesso que desorientado, surpreendido comigo próprio.
Apoiei lhe a cabeça contra mim enquanto, sem saber porquê, lhe dei um pouco da água do meu cantil que apenas molharam os lábios
Já tinha abatido inimigos, já tinha visto morrer camaradas mesmo ao meu lado, eu próprio apresentava umas cicatrizes de estilhaços, curadas mal e porcamente nas trincheiras à base de penicilina, mas nunca tinha passado um episódio que tivesse mexido tanto comigo.
Vi como ele chorava e chorei também. Numa voz quase sussurrada disse:
- Só não queria ser capturado....Para a semana....Para a semana...vou de licença...Há tanto tempo que não vejo os meus pais,....a minha namorada.....- Falava lentamente com pausas para tentar respirar, o que fazia com pequenos movimentos entrecortados em que apenas um dos lados do corpo se movia.
Calou-se. No seu peito, uma mancha negra e quente alastrava e arrefecia lentamente empapando-lhe o corpo. Senti como a vida lhe escapava a cada instante.
Olhou para mim, os seus olhos azuis cinza iguais aos de Marlene, a quem não vejo há meses, o seu cabelo louro e negro como o dela.
Quase num murmúrio deixou escapar um pedido que apenas entendi pelo gesto de tirar a custo um envelope de dentro do blusão e que me entregou. Morreu em seguida.
Retirei do envelope uma carta dirigida aos pais e à namorada.


....................................- Queridos pais- começava a carta,
- Espero que esteja tudo bem e que esta carta os vá encontrar de boa saúde.
Estou contentíssimo.
Foi antecipado a agenda no nosso batalhão e para a semana vou gozar a licença de quinze dias por que anseio há tanto.
As coisas tem estado difíceis, mas estamos aguentando e em breve iremos receber reforços.
O nosso comandante falou ontem às tropas e disse que as nossas forças estavam a preparar o avanço final, que estávamos a progredir em todas as frentes, que a guerra estava a acabar e que com o empenho de todos, estávamos a sair vitoriosos.

Já lhes disse na carta anterior que o posto onde estou agora é relativamente sossegado e seguro, por isso nada de preocupações.
Eu estou bem graças a Deus, embora cheio de saudades de todos.

Digam à Marlene que não fique em cuidados por não lhe escrever esta semana , pois daqui a dias estaremos juntos se Deus quiser.
Digam-lhe que a amo muito e que anseio por ela
e pelo dia do nosso casamento.

Beijos a todos, e renovadas saudades.

Vosso filho que vos adora

xxxxxxxxxx


Dobrei a carta e voltei a colocá-la no envelope. Um sentimento de sacrilégio tomou-me todos os sentidos, e chorei como há muito o não fazia.
Marlene....
Também se chamava Marlene.
Cumpri as rotinas: certifiquei-me da chapa identificadora que trazia ao pescoço.
Vi-lhe os bolsos de onde retirei uma fotografia da sua Marlene: cabelos e olhos escuros como os meus. Senti o coração parar com o sentimento de miséria que me tomou.
Mas foi ao fazer a operação de segurança da arma que fiquei no estado de destroçado, desgraçado até, em que me encontro agora; o carregador não tinha já munições, a câmara vazia.
A arma...
Estava descarregada...






Charlie