quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Carta de um ex-deus

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Agora que o passar dos séculos perdeu tudo o que dava à sua passagem sentido, deixo que estas linhas se escrevam lentamente nos bocados de pó e folhas com que o vento me tem vindo a cobrir por entre as mortalhas sucessivas de esquecimentos e ervas.

Sou dos Deuses do meu Tempo o que há mais tempo se encontra nesta posição; deitado de lado, derrubado pelas hordas de invasores que desconheciam o infinito dos nossos poderes.
Derrubaram-nos, aos Deuses menores, a golpes de espada e lança por entre os gritos e horror dos vencidos. Atirados ao chão, espumas carmim salpicadas de vermelho sobre o negro dum mar de sangue.
A outros dos mais poderosos, postos em altos pedestais disto que foi um templo, grandes e imponentes no seu brilho de mármore e granito, foi-lhes dado a desonra do degredo e cativeiro.
Derrubados com cautelas e levados a toque de chicotes e gritos por escravos miseráveis e desgraçados.
Expostos depois de longa viagem para a sua suprema humilhação e para gáudio do olhar pagão e vago de esposas e concubinas nos jardins e palácios dos generais vencedores.
Outros menos afortunados ainda jazem, no entanto, aqui espalhados pelo solo; quase enterrados por entre os destroços que os milénios arrancaram das paredes e tectos .
A eles foram-lhes cortadas as cabeças para servirem de troféus nas casas da soldadesca e serem mais tarde postos ao desprezo num canto qualquer ou vendidos a algum obscuro comerciante.
Os corpos desmembrados vivem desde então no chão, nesse inferno da escuridão e silêncio e eu miro-os neste olhar que se cega tanto com o sol nascente como com os rebentos de vegetação da Primavera que me cobre todo o campo de visão até que braseiro do Estio os transforme novamente em pó e nada...


Agora vou interromper por momentos esta escrita.
Está a chegar a hora pela qual espero todos os dias.
Dentro de poucos minutos um reflexo fará incidir sobre o meu olhar uma luz intensa e dourada, tão forte e luminosa, que durante um momento toda a terra se renderá ao meu poder ancestral.
Aos meus pés pedindo protecção, aquele abraço de amantes que de anéis nos dedos protegeu o meu corpo caído enquanto o seu era trespassado pela impiedade das espadas.
Renovarão nessa altura em raios de sol, a jura de eterna pertença: A mim, o Deus do Amor...


Charlie